Free Fire e o Brasil

Discreto em solo nacional, o Battle Royale da Garena é um autêntico colosso na região do sudeste asiático e, essencialmente, no Brasil. Faltam respostas para as perguntas de índole de como um jogo mobile que escasseia qualidade gráfica se torna um fenómeno.

O jogo foi lançado na reta final do ano de 2017, caracterizando-se pelo tradicional Battle Royale onde 50 jogadores caem de paraquedas tendo de recolher mantimentos e equipamentos, de forma a eliminar os adversários. Segundo a App Annie, fonte especializada em dados mobile, Free Fire foi o jogo com mais downloads na Play Store pelo terceiro ano consecutivo. Free Fire pode ser jogado pelo telemóvel assim como pelo computador.

A popularidade deste Battle Royale é tanta que até o astro português, Cristiano Ronaldo, tem presença dentro do jogo. No final do ano passado, a produtora revelou uma parceria com o jogador da Juventus, onde o próprio ganhou vida com uma personagem no Free Fire.

 
Repetindo feito dos três anos anteriores, Free Fire foi o jogo mais baixado em 2020 (Foto: Garena Free Fire/ Divulgação)

O Battle Royale da Garena conquistou ainda 100 milhões de jogadores simultâneos em 2020, além de 72 mil milhões de visualizações nas diversas plataformas. No somatório final e tendo em conta anos anteriores, o jogo consegue ultrapassar as 100 mil milhões de visualizações.

No Brasil, dados de 2019 apontam que 25% da população, cerca de 52 milhões de habitantes, vive abaixo da linha da pobreza, com rendimentos mensais de 440 reais, ou seja, 68 euros e o salário mínimo brasileiro é de 1,100 reais, cerca de 171 euros. Assim jogos como CS:GO, Call of Dutty, VALORANT não conseguem chegar a todos, uma vez que para jogar ao mais alto nível é necessário um sistema com melhores especificações.

Tendo em conta a situação socioeconómica vivida no Brasil o Free Fire, além de um jogo popular, possui também uma forte componente de inserção social, isto porque, os mais desfavorecidos passaram a ter acesso a um novo palco para brilhar.

Inclusivo, Free Fire contou com perto de 1 milhão de pessoas a assistir em simultâneo o primeiro mundial da jogo (Foto: Garena Free Fire/Reprodução)

A escassez de qualidade gráfica referida anteriormente é precisamente um dos pontos que o coloca noutro patamar. Não é necessário um computador ou um dispositivo sofisticado de última geração para estar a competir a alto nível. Posto isto, as pessoas com adversidades monetárias podem ter a chance de se incluir no mundo dos videojogos e no cenário competitivo.

Assim sendo, um simples telemóvel com pouca qualidade, acessível a estes estratos sociais, pode ser o meio de trabalho e a fuga dos mesmos ao panorama criminal, algo frequente e uma saída fácil. Free Fire agrupa também na sua comunidade jovens das periferias.

Gaules: "Hoje o Brasil é o país do futebol e do Free Fire"

O Brasil é um país notável no que toca à cultura de futebol, e nos últimos anos o CS:GO também ganhou relevância na vida dos brasileiros, com as conquistas internacionais do antigo quinteto liderado por Gabriel "Fallen" Toledo, mas hoje em dia o Free Fire já começa a partilhar esse destaque nacional junto do FPS da VALVe.

Citando Alexandre "Gaules" Borba, conhecido streamer brasileiro, na perspetiva brasileira, afirma que “as crianças hoje falam as gírias de Free Fire e não as do crime”. Gaules declara ainda que as mesmas crianças que recorriam ao crime e admirava os traficantes, seguem o exemplo de Bruno "Nobru" Goes, campeão do mundo de Free Fire e eleito melhor do mundo com apenas 19 anos.

Nos Prémios eSports Brasil, Gaules proferiu uma frase que marcou o Brasil: "Eu costumava falar que o Brasil é o país do CS e do futebol, tenho certeza que não é mais isso. Hoje o Brasil é o país do futebol e do Free Fire." Naturalmente emocionado, o streamer disse ainda: "Eu saber que a próxima geração não quer mais ser um traficante, não quer mais ser um bandido, não quer ter mais uma arma na mão, ele quer ser o Nobru. Quer ser uma menina como a Thaiga ou a Babi (ambas streamers da LOUD). Quer entrar para um equipa ou uma organização com o telemóvel. Isso deixa-me tranquilo por saber que essa nova geração realmente representa o Brasil".

Vencedores dos Prémios eSports Brasil, Gaules emocionou nobru no seu discurso (Foto:Prémios eSports Brasil/Saymon Sampaio)

Oriundo do Jardim Novo Oriente, uma favela da zona sul de São Paulo, Bruno "Nobru" Goes começou por ter o sonho de ser jogador de futebol, mas apesar de ter competido em alguns torneios na sua adolescência decidiu rumar até à faculdade para melhorar o seu currículo. No entanto o mesmo apenas conseguiu uma bolsa de estudo de 50%, que não era suficiente porque os pais não tinham maneira de pagar o resto e Nobru acabou por desistir.

Ainda criança, Nobru e a sua mãe foram assaltados, com o jovem a ficar sem o seu telemóvel. Desde então o mesmo optou por nunca mais ter um dispositivo, por isso os seus primeiros passos como jogador de Free Fire foram dados com o dispositivo do pai, que não ficava muito contente, porque estava desempregado e usava-o para para procurar uma oportunidade de trabalho.


Equipa campeã era constituída por Nobru, FIXA, LEVELUP, JAPA, 01pires e CHEFEXL. (Foto:Garena)

Nobru que é indiscutivelmente a cara do Free Fire não só do Brasil, como do mundo. Campeão do mundo com o Corinthians, eleito MVP do Mundial e melhor jogador do mundo em 2019, é uma inspiração pela fuga aos vícios criminosos instaurados nas favelas. Mas estes espaços contêm pessoas do bem e que não desejam ter de recorrer a este tipo de atos para vencer na vida, apresentado-se o Free Fire como alternativa e Nobru é um exemplo.

Mais recentemente, Nobru criou uma organização com o amigo de longa data, Lucio "cerol" Santos, juntando vários nomes conhecidos do cenário como Jonatha "JapaBKR" Pereira, Felipe "F4K" Bandeira e Carlos "Syaz" Vasconcellos

Os números do Free Fire no Brasil

Quando se fala do fenómeno Free Fire no Brasil, é inevitável falar da LOUD. A organização brasileira iniciou operações com o jogo mobile da Garena e soube capitalizar e maximizar o seu público. Acolhendo vários jogadores e conquistando vários troféus, é mais fácil falar da LOUD trazendo números para cima da mesa.

Quase 11 milhões de subscritores no Youtube, 8.8 milhões de seguidores no Instagram e aproximadamente 800 mil seguidores no Twitter. São estes os números que caracterizam a LOUD, que além de ganhar competitivamente, soube potencializar o público que rodeia os jogadores em criação de conteúdo, tornando-os autênticas celebridades.


LOUD em 16 meses no Youtube conseguiu atingir a marca de 1 bilhão de visualizações na plataforma (Foto: LOUD/Divulgação)

O ano também começou da melhor maneira para o circuito doméstico brasileiro de Free Fire. Na estreia da temporada da Liga Brasileira de Free Fire (LBFF) o recorde de espectadores foi batido, com o pico de audiência a atingir os 751 mil espectadores em simultâneo, um aumento de 74% relativamente à primeira temporada, com a competição a ganhar espaço nos canais de televisão brasileiros.

A força do Free Fire no Brasil também já começou a despertar o interesse dos gigantes internacionais, com a Team Liquid já a competir em solo brasileiro e com outras organizações de olhos postos no cenário.

O público que rodeia estas personalidades do Battle Royale da Garena é imenso e diversificado, chutando o preconceito para o canto. Mais que inclusivo, o Free Fire é também uma fuga aos vícios enraizados na sociedade. Respeito e admiração tem de ser valores inerentes aos espetadores de uma das maiores comunidades do mundo.